segunda-feira, 5 de novembro de 2007

"Recordações do Escrivão Isaías Caminha" de Lima Barreto - Alguns Temas

Continuando com nosso projeto de apresentar temas variados, trago hoje esse texto que foi apresentei na UFPR, na matéria Literatura Brasileira II. O texto é do Lima Barreto, um dos melhores escritores brasileiros em minha opinião que com sua literatura militante continua tão atual quanto há cem anos.


Recordações de Escrivão Isaías Caminha de Lima Barreto

Apresentação

Trabalho de analise do modelo de construção literária utilizado no livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha de Lima Barreto visando apontar as características autobiográficas e extra biográficas da obra e as relações entre literatura e jornalismo do começo do século XX relevantes para a construção da voz narrativa do texto.



Introdução

A publicação de Recordações do Escrivão Isaías Caminha foi acompanhada por uma enxurrada de críticas, embora tenha tido uma boa recepção do público. Acusavam-no de ser extremamente pessoal na caracterização de suas personagens e um tanto autobiográfico, sem esquecer da acusação de descuido e desleixo na escritura do livro. Fato é que hoje, quase cem anos depois do lançamento, o livro se mostra de uma atualidade interessante na caracterização de tipos humanos. Essa é uma tentativa de demonstrar que Recordações não é só um transplante da realidade, mas é uma obra construída com certos fins que o escritor almejava. Nessa busca procuramos analisar esse caráter biográfico e pessoal da obra; reconhecer fontes de inspiração de fora do círculo imediato de vivência do escritor; e caracterizar a obra dentro do seu contexto literário.

I - As Recordações... Uma Biografia?

Francisco de Assis Barbosa, autor de A Vida de Lima Barreto[1] defendia o caráter autobiográfico de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Diz que muito do caráter de Lima Barreto foi herdado de seu pai.Falando do pai do escritor, João Henriques de Lima Barreto, diz que, ao morrer um colega e deixando vago um posto que ele acreditava merecer:

Foi, portanto, com fumaças de operário qualificado que o aprendiz do mestre Faulhaber começou a trabalhar nas oficinas do Jornal do Comércio, de cuja corporação se desligaria, entretanto, alguns anos depois, por entender que estava sendo vítima de injustiça (...). A atitude do rapaz, demitindo-se de um jornal de prestígio, para ficar sem emprego, embora com o orgulho satisfeito, revela, desde logo, o temperamento inconformado e rebelde” [2].

João Henriques passou, então para A Reforma. Ele traduziu o Manual do Aprendiz Compositor de Jules Claye, na verdade uma adaptação. Assis Barbosa continua:

Por esse pai tão amigo e inteligente, Lima Barreto há de conservar uma grande admiração por toda a vida. Muito provavelmente dele se lembrou (...) ao traçar o perfil do pai de Isaías Caminha.’ Meu pai, o seu corpo anguloso, seco, a sua dor contida que se escapava no seu olhar e na sua fisionomia transtornada. Via-o às tardes, nos dias de bom humor, mudá-la de chofre, fazer-se risonho, vir para mim, sentar-se à mesa, e, à luz do lampião de querosene, explicar-me pitorescamente as lições do dia seguinte’. Sim, não há dúvida que são o mesmo pai, um e outro, como o filho deste, Isaías, é o próprio romancista”.[3]

A obra realmente apresenta muitas similaridades com a vida do próprio Lima Barreto. Assim como Isaías, Lima Barreto sentia-se excluído em razão de sua cor e condição social, ele diz de si:

“Nasci sem dinheiro, mulato e livre” [4]

Lima Barreto era mulato e, na sua época, a ciência endossava uma pretensa superioridade da raça branca em relação às demais, além de considerar a mestiçagem como degeneração da raça. O autor não mistifica ou demoniza a ciência em razão disso, antes reconhece os condicionamentos sociais, os preconceitos, dos quais ela não está imune. Condicionamento que, em última instância, rege os relacionamentos sociais da burguesia carioca.

Isaías caminha, logo que sai da casa materna em direção ao Rio, desce em uma estação ferroviária para comer alguma coisa:

“Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco, reclamei: ‘Oh! Fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!’ Ao mesmo tempo, ao meu lado, um rapazola alourado reclamava dele, que lhe foi prazenteiramente entregue.” [5]

Mais tarde, quando houve um roubo no hotel em que estava, Isaías foi levado à prisão e tratado como criminoso devido principalmente à sua cor. Mais tarde, ao oferecer-se como candidato a uma vaga anunciada nos jornais, recebeu uma resposta negativa do homem que lhe atendeu:

“Que diabo! - Eu oferecia-me, ele não queria! Que havia nisso demais? Era uma simples manifestação de um sentimento geral e era contra esse sentimento, aos poucos descoberto por mim, que eu me revoltava”. [6]


Outra ligação entre Isaías e Lima Barreto é a freqüência deste à Biblioteca Nacional. Isaías relembra:

“Descobri a Biblioteca Nacional, para onde muitas vezes fui, cheio de fome, ler Maupassant e Daudet”. [7]

Mais incrível, talvez, seja a quebra de ilusão dramática no capítulo XIV onde o autor se põe a descoberto falando de seus anseios e projetando o lançamento de um livro, Clara dos Anjos:

A indolência mental leva-os a isso e assim também pensava o doutor Loberant. Não tive grande trabalho em o fazer modificar o juízo na parte que me tocava. Mas não me dei por satisfeito. Percebi que me viam como exceção; e, tendo sentido que a minha instrução era mais sólida e mais cuidada do que a da maioria deles, apesar de todos os seus diplomas e títulos, fiquei animado, como ainda estou, a contradizer tão malignas e infames opiniões, seja em que terreno for, com obras sentidas e pensadas, que imagino ter força para realizá-las, não pelo talento, que julgo não ser muito grande em mim, mas pela sinceridade da minha revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como podem supor. Cinco capítulos da minha Clara estão na gaveta; o livro há de sair...”. [8]

Esse caráter biográfico e as abundantes alusões pessoais serão muito criticados. J. dos Santos, pseudônimo de Medeiros de Albuquerque dirá:

O seu livro é uma revelação e uma decepção. Uma revelação porque é positivamente um escritor seguro de sua pena(...) uma decepção porque todo ele é feito de alusões pessoais”[8]

Alcides Maia, com tom amável, apontará o principal defeito do livro- sua nota pessoal, que o reduz quase a um “ álbum de fotografias”. Era uma “crônica íntima de vingança, diário atormentado de reminiscências más, de surpresas, de ódios” [10]. O crítico José Veríssimo também alertará o escritor, em carta, sobre o tom pessoal da obra.

Lima Barreto em resposta a J. dos Santos escreveu:

"Estou certo de que as pessoas que não me conhecem só poderão ter a impressão que o senhor teve. Há, entretanto, alguma coisa que a justifique, dentro mesmo dos motivos literários. Se a revolta foi além dos limites, ela tem, contudo, motivos sérios e poderosos. Na questão dos personagens há (ouso pensar) uma simples questão de momento. Caso o livro consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrará de apontar tal ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem “. [11]

E se isso é verdadeiro para as alusões de certas personagens, também o é para as alusões ao próprio Barreto. Nesse sentido, a obra não seria tão autobiográfica assim. Mesmo porque o relato da vida de Isaías apresenta dissonâncias com o que sabemos da vida de Lima Barreto. A mãe de Isaías sobrevive ao seu pai, exatamente o contrário do que aconteceu com os pais de Lima Barreto. Sim ele utilizou elementos à sua volta, introduziu experiências da própria vida e das relações que regiam a literatura no Brasil no começo do século XX, mas tudo com o fim de tornar a obra real, verossímil e, como disse o próprio Lima Barreto, descrever tipos humanos e situações que fossem para além dos limites de sua própria época.

Se Lima Barreto construía a sua obra, como um bom chef, misturando diversos ingredientes, e tirando deles tantos sabores, tantas nuanças, como eram as medidas, não haveria de ser o ingrediente principal, aquele catalisador que transmutava a “áurea” realidade em “plúmbeas” letras, ninguém, senão o próprio Afonso Henriques de Lima Barreto?

Recordações do Escrivão Isaías Caminha não é apenas uma biografia, personagens e situações são construídos com um fim. E recebem na sua construção elementos que vão além do circulo de vivência de Lima Barreto. E alguns desses elementos, dessa intertextualidade, remetem ao diálogo com um texto escrito publicado vinte e seis séculos antes, O Livro do Profeta Isaías da Bíblia Sagrada.



II - O Profeta Isaías Caminha


Caminha era filho de um padre, assim a sua existência se reveste de uma certa aura de sacralidade, embora, marcada pelo tabu. E essa origem será a tônica por trás do seu ideal de missão. A desigualdade dentro do lar, de nível mental, agiu sobre ele de forma curiosa, deu –lhe “anseios de inteligência”. Da mãe recebe a cor, a mãe que vivia na sua ignorância, ela que era o seu socorro financeiro na viagem ao Rio de Janeiro. Mas é do pai, aquele homem culto e santo que pecara apenas uma vez, que herdará a sua visão de mundo. Visão que impunha uma missão, não se calar.

O “velho” Isaías, repensando a sua juventude, percebe o afastamento da sua missão e a contemporizarão com os ideais que abominava.

Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus sonhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso”. [12]

Nesse sentido a obra dialoga com a base por trás do próprio pai de Caminha, ou seja, a Escritura aceita, como sagrada, pela instituição que o fez sacerdote, a Bíblia. E pelo nome e características do personagem, Isaías, faz ponte com o Livro do profeta Isaías, embora dialogue com outros trechos da Escritura. Assim como o personagem de Lima Barreto, o profeta Isaías se levanta contra a ignorância auto-infligida do povo, contra os costumes aceitos socialmente, contra a injustiça, contra um estado que produzia leis injustas:

O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai da nação pecadora, do povo carregado de iniqüidade, da semente de malignos, dos filhos corruptores: deixaram ao Senhor, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás”. [13]


Isaías caminha, a semelhança do profeta, entendia que se havia opressão por parte dos poderosos o povo, pela sua indolência, era também responsável porque aceitava, “o meu povo não entende”:

Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às misérias como galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia! Por que não lhes examinam as ações, o que fazem e apara que servem? Se o fizessem... Ah! Se o fizessem! Que surpresa! Riem-se, enquanto do suor, da resignação de vocês, das privações de todos tiram ócios de nababo e uma vida de sultão...” [14]


O sentido de justiça, ou o que é melhor, o sentido de falta de justiça era o que animava o profeta:

"Como se fez prostituta a cidade fiel! ela que estava cheia de retidão! A justiça habitava nela, mas agora homicidas. A tua prata se tornou em escórias, o teu vinho se misturou com água. Os teus príncipes são rebeldes, e companheiros de ladrões; cada um deles ama as peitas e corre após salários; não fazem justiça ao órfão e não chega perante eles a causa das viúvas. Portanto, diz o Senhor, Deus dos Exércitos, o Forte de Israel: Ah! consolar-me-ei acerca dos meus adversários, e vingar-me-ei dos meus inimigos; E voltarei contra ti a minha mão, e purificarei inteiramente as tuas escórias; e tirar-te-ei toda a impureza. E te restituirei os teus juízes, como eram dantes; e os teus conselheiros, como antigamente; e, então, te chamarão cidade de justiça, cidade fiel".[15]

Assim como o Isaías do romance ele dirigiu suas duras diatribes aos corruptos de seu tempo nos famosos “Ais”:

“Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem herdade a herdade, até que não haja mais lugar, e fiquem como únicos moradores no meio da terra!”
“Ai dos que se levantam pela manhã, e seguem a bebedice; e se demoram até à noite, até que o vinho os esquenta!”
“Ai dos que puxam pela iniqüidade com cordas de vaidade, e pelo pecado como se fosse com cordas de carros!”
“Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade; e fazem do amargo doce, e do doce amargo!”
“Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e prudentes diante de si mesmos!”
“Ai dos que são poderosos para beber vinho, e homens forçosos para misturar bebida forte:
Dos que justificam o ímpio por presentes, e ao justo negam justiça”[16]


A imagem se reveste de certa ironia quando Isaías em uma de suas lembranças lastima sua ignorância das coisas da igreja e que por isso não poderia rezar uma oração pela alma de Floc[17]. Pelo menos em duas ocasiões faz ainda referências ao texto sagrado. Na primeira pelo uso do estranho vocábulo harpagonescamente:

"Embaixo o gerente, em colete, sentado diante da grande mesa, contava harpagonescamente uma chusma de níqueis que is dividindo em colunas, alinhando-as depois para o lado esquerdo à proporção que contava”.[18]


Talvez uma utilização da palavra grega Harpax (αρπαχ,αγον) usada no original grego da carta aos Coríntios com o sentido de “avarento”:

“Mas sendo assim, vos escrevi que não comuniqueis com alguém que se chama vosso irmão se for ele fornicário, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou bêbedo, ou roubador; com esse tal nem sequer comais”.[19]

E é dessa Carta a segunda citação da obra. Quando caminha vai avisar a Loberant, num prostíbulo, que Floc havia morrido, uma velha prostituta quis beijá-lo:

“Sempre foi do meu temperamento fugir daquilo que a Bíblia denomina tão rigorosamente para os nossos ouvidos modernos, pois não podia compreender que homens de gosto, de coração e inteligência, vivessem escravizados ao que S. Paulo, na I Epístola aos Coríntios, classificou tão duramente, para aconselhar o casamento”.[20]


É o padre que emerge, o pai de Caminha que tanto o marcou, numa citação da carta paulina no seguinte trecho:

“Mas, por causa da prostituição, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido”.[21]


Ao pai, sendo sacerdote, estava vedado o casamento. Mas ele deixara-se levar uma única vez pelas paixões e desse pecado nasceu Caminha. É de se notar que Lima Barreto constrói a personagem Caminha com uma certa ansiedade espiritual em cuja origem está o pecado do pai. Pecado de uma única vez. Mas é exatamente da relação pecaminosa, do tabu, que surge a necessidade da pureza e do correto tão fortes em Caminha.


Se o romance é marcado pela tipologia Caminha/ profeta Isaías, o seu desenlace será feito pela inversão do tipo. O que tirou Isaías da sua mediocridade de contínuo foi indiretamente a morte de Floc, pois em conseqüência dela foi alçado à condição de repórter. Como o tivessem mandado avisar Loberant do suicido do colunista, Isaías teve “a visão” do velho moralista no trono. No prostíbulo, onde estavam Loberant e seu séqüito em orgia, Isaías viu o mestre despido da máscara que sustentava toda a ação no jornal. Loberant, talvez acuado por terem lhe visto a verdadeira face, concede favores e por fim torna-se um quase confidente de Caminha. E esse é o começo da ascensão de Isaías. Interessante é que o profeta Isaías também teve uma visão do chefe no trono, e isso depois de uma morte, a do rei Uzias, e essa visão também marcará o profeta, torna-lo-á confidente e favorecido pelo Senhor dos Exércitos.

“NO ano em que morreu o rei Uzias, eu vi ao Senhor, assentado sobre um alto e sublime trono; e o seu séquito enchia o templo.Os serafins estavam acima dele; cada um tinha seis asas: com duas cobriam os seus rostos, e com duas cobriam os seus pés, e com duas voavam. E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos: toda a terra está cheia da sua glória.
E os umbrais das portas se moveram com a voz do que clamava, e a casa se encheu de fumo.
Então disse eu: Ai de mim, que vou perecendo! porque eu sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios: e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos! Mas um dos serafins voou para mim, trazendo na sua mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; E com ela tocou a minha boca, e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; e a tua iniqüidade foi tirada, e purificado o teu pecado”.[22]

E o contraste se faz exatamente porque na visão de Isaías seus “pecados foram tirados” enquanto Caminha tem pecados acrescentados. Um é chamado para uma missão, o outro abandona o que deveria ter sido sua missão, não por chamado, mas por nascimento. Caminha por fim declara:

Não; eu não tinha sabido arrancar da minha natureza o grande homem que desejara ser; abatera-me diante da sociedade; não soubera revelar-me com força, com vontade e grandeza... Sentia bem a desproporção entre o meu destino e os meus primeiros desejos: mas ia”.[23]

Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer”.[24]

Os profetas antigos não tinham somente a função de vaticinar acontecimentos futuros em imagens turvas cheias de mistérios, eles tinham também uma função social muito importante e direta, sem meias palavras, que era denunciar os desvios de conduta, as hipocrisias religiosas e os fragrantes de injustiça de seus contemporâneos, concidadãos comuns e líderes religiosos e civis. Muitas vezes pagaram essa ousadia com a expropriação de seus bens, castigos e açoites, exílio e até a pena capital. Diz uma tradição que o próprio profeta Isaías foi serrado ao meio, por causa de suas críticas ao ímpio rei Manasses. Mas era a sua missão e dela não poderiam fugir. Esse conceito de missão, de militância, é a força motriz por trás das Recordações. Não a missão religiosa do transcendente, mas a da ética e justiça sociais. Como veículo, instrumento, dessa missão está em posição vantajosa a literatura, mas não qualquer literatura e sim uma literatura militante que não era apenas apanágio de uma pretensa ilustração e cultura burguesa. Para Lima Barreto, a literatura tinha uma função social que estava sendo negligenciada pelos autores brasileiros. E essa missão não poderia ser levada a cabo sem uma reflexão profunda dos modos de produção cultural, principalmente literária, da época no Brasil em sua profunda relação com a imprensa.



III - Literatura e Imprensa


A - Imprensa

Isaías Caminha tem como pano de fundo a redação de um jornal, O Globo, que seria uma referência ao Correio da Manhã. A literatura passava necessariamente pelos jornais, sem a aprovação deles era muito difícil a publicação para novos escritores, situação que Lima Barreto experimentou.Com o fim da revista Floreal ficou sem ter onde publicar a sua literatura porque não teve “a felicidade de nascer de pai livreiro” nem estava disposto às “vis curvaturas” e “iniciações humilhantes” a que se submetiam os novos diante dos mandarins das letras e da grande imprensa.[25] Essa relação entre os novos escritores e a política dos jornais é descrita no capítulo XII quando Caminha recebe das mãos de um poeta um livro para ser avaliado pelo “Sr Floc”:

Prometi-lhe e o cândido poeta Félix da Costa saiu satisfeito, apertando-me a mão demoradamente, oferecendo-me a casa e os préstimos. Folheei um instante o livro; era uma plaquette de cento e tantas páginas, povoadas de sonetos e outras poesias soltas. Depositei-o sobre a mesa do Secretário. De antemão, sabia que Floc não se deteria na sua leitura. Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas muito bordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas com antipatias na redação, o cliché é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro. Acontecia isso com três ou quatro autores. Um destes era Raul Gusmão, a quem o diretor invejava o talento de escrever; além dele, havia um grande poeta, respeitado em todo o Brasil, e um outro moço que se rebelara contra a ditadura do jornal. Com os nomes novos não havia hesitações; calava-se, ou dava-se uma notícia anódina, "recebemos, etc.", quando não se descompunha “. [26]


Em continuação a literatura é vista como propriedade do jornal, era um “pecado” um homem sem nome querer produzir literatura, uma ousadia:

Aos olhos dos homens da imprensa, publicar um livro é uma ousadia sem limites, uma temeridade e uma pretensão inqualificáveis e dignas de castigo-Como é, disse certa vez Oliveira, que este sujeito publicou um livro?... um desconhecido! Um idiota magro! Um tipo que nunca escreveu coisa alguma... Ele queria dar a entender como não tendo escrito coisa alguma, o fato do rapaz não ter publicado artigos nos jornais ou feito mesmo a reportagem dos Telégrafos. O pensamento comum dos empregados em jornais é que eles formam o pensamento, e não só o formam, mas "são a mais alta representação dele". Fora deles, ninguém pode ter talento e escrever, e, por pensarem assim, hostilizam a todos que não querem aderir à sua grei, impedem com a sua crítica hostil o advento de talentos e obras, açambarcam as livrarias, os teatros, as revista, desacreditando a nossa provável capacidade de fazer alguma coisa digna com as suas obras ligeiras e mercantis.Os mais hábeis daqueles que estão de fora, porém, quando premeditam a infame ousadia de publicar, arranjam preliminarmente relações de amizade nos jornais, de modo a obter um bom acolhimento para o seu trabalho. Isso acontece com os de pequeno nascimento, com os que vêm dos estados; mas autor que aqui nasceu, em certa camada, que tenha títulos e empregos, pode estar seguro que a crítica anônima dos jornais lhe será unânime em elogios e animação”.[27]

A Imprensa era Todo-poderosa, manipulava as massas como no relato da Revolta dos descalços, manipulava informações, ela apontava lideranças, a autoridade a temia.

Presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha travado conhecimento com um engenhoso aparelho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho de prestidigitador, provocando ilusões, fantasmagorias, ressurgimentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinoni e a estupidez das multidões”.
“Era a Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!”. [28]


Apenas o intelectual tinha participação em institutos culturais e superiores, dependendo das relações de suas pessoais. Nesses órgãos o fator determinante era o apoio recebido “ficando o talento e a inteligência como valores ornamentais”.

Estamos diante de um processo de profissionalização do homem de letras, processo que passa pelo jornal e que depende das relações pessoais de homem de letras e não do seu real talento. Sobre a época, Carmem L.N. de Figueiredo explicou:

Constituía-se, dessa forma, o novo perfil do intelectual, profissional assalariado, prisioneiro da ambígua condição de pertencer a uma sociedade que se moderniza: suas idéias reformadoras surgiram a partir de suas necessidades pessoais (de anseio de integração ao universo cultural europeu, seu desejo de realizar um diálogo com seus companheiros). Todavia, as condições sociais daí advindas servem para frustrá-lo. Como conseqüência, dissemina-se uma profunda crise intelectual e moral, cujos alicerces estavam na sensibilidade romântica tradicional, moldando quer atitudes radicais, quer manifestações de desalentos e indiferença quanto à nova ordem. O novo ritmo da vida cotidiana, alterado pelas inovações técnicas do início do século, transformou drasticamente a função do homem de letras. A diminuição do tempo livre necessário ao exercício e à contemplação literária, a disputa com o jornal diário, os manuais didáticos, as novas formas de lazer produzidas com a tecnologia sofisticada restringiram ao máximo a importância e a função do literato. O jornalismo passou a ser a atividade central para a grande maioria dos intelectuais, ao mesmo tempo vinculada ao trabalho político “. [29]

O novo perfil do literato agora matizado pela substituição de seus ideais “nobres” pela relação com a arte, mediada pela técnica. A luz elétrica, a maquina de escrever, o refinamento do traje segundo a moda ditada são imagens do progresso que contrastam com a realidade difícil vivenciada.

Quem publicava na época era a casa Garnier. Com a morte de B.L. Garnier, a editora passou a ser dirigida da França por seu irmão Hoppolyte Garnier, descrito por Lima Barreto como: “Velho rico, ignorante das nossas coisas, certamente já mentecapto, o seu critério nas publicações era o dos pistolões recebidos e do nome que o autor tinha no mundo”. [30]

Portanto, para publicar o autor precisava ter contatos na Europa ou conseguir uma publicação por lá e mesmo que conseguisse, ele teria que ter ainda a aprovação dos jornais correndo o risco de ter seu livro encalhado nas prateleiras das livrarias. E foi isso que Lima Barreto fez para publicar as Recordações, entregou o original a seu amigo Antonio Noronha dos Santos para que este, em viagem à Europa, entregasse a algum livreiro para publicação. Sua intenção não era “fazer dinheiro” com a obra, mas dar a sua mensagem, como ele disse em carta ao amigo Antonio:

Fizeste bem em lhe autorizar a imprimir o livro. Não tenho pretensão alguma de lucro com o caminha. Além de saber que um primeiro livro tem fortuna arriscada, sabes muito bem o que penso sobre essa cousa de make money com livros. Decerto, se eu estivesse aí, em Paris, havia de guardar bem escondida a pretensão de ter um castelo com produto das minhas obras; mas aqui, dentro do Brasil e da língua portuguesa, as minhas pretensões são mais razoáveis”. [31]


B - Literatura Militante

É nesse meio que Lima Barreto introduz seu Isaías e isso para, além de denunciar a situação dos escritores brasileiros, mostrar que a corrupção de uma pessoa se dá não tanto por uma característica congênita e sim por influência do meio. Nesse sentido salta a vista a profunda relação que existe entre a construção do romance e a situação do escritor na época. Portanto, Lima Barreto demonstra que a degradação pode ser produto do meio, nesse caso o meio jornalístico em que relações de poder se digladiavam. Ele assim explica a situação:

Não é meu propósito fazer uma obra de ódio; de revolta enfim; mas uma defesa das acusações deduzidas superficialmente de aparências cuja essência explicadora, as mais das vezes, está na sociedade e não no indivíduo desprovido de tudo, de família, de afetos, de simpatia, de fortuna, isolado contra os inimigos que o rodeiam, armado da velocidade da bala e da insídia do veneno(...) O meu fim foi fazer ver que um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas, batido, esmagado, prensado pelo preconceito com o seu cortejo, que é, creio, coisa fora dele(...) Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar atenção para a minha brochura” [32]

Portanto a pessoalidade com que a obra é construída e as invocações ao jornal têm por fim chamar atenção para a própria obra e, é claro, para as condições nela descritas. Esse tipo de literatura ultrapassa os limites da pura obra de arte e passa a ser um instrumento de denuncia social, Isaías diz em certo ponto:

Mas, não é a ambição literária que me move ao procurar esse dom misterioso para animar e fazer viver estas pálidas Recordações. Com elas, queria modificar a opinião dos meus concidadãos, obrigá-los a pensar de outro modo, a não se encherem de hostilidade e má vontade quando encontrarem na vida um rapaz como eu e com os desejos que tinha há dez anos passados. Tento mostrar que são legítimos e, se não merecedores de apoio, pelo menos dignos de indiferença”.[33]

Portanto, a Literalidade par Lima Barreto tem um sentido mais profundo enraizado na vivência do autor. Logo, o estilo, a forma, é menos importante que o conteúdo. Irenísia Torres de Oliveira, Pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará, diz o seguinte:

"Na conferência O Destino da Literatura, que não chegou a ser proferida, o objetivo parece ser a procura da literariedade ou do belo, em outras bases que não o estilo. O autor toma como exemplo Crime e castigo, de Dostoiévski, um livro escrito fora do padrão grego, e pergunta qual seria a estranha beleza dessa obra. A resposta vem com uma referência a Taine, crítico positivista francês, para quem "a beleza é a manifestação, por meio dos elementos artísticos e literários, do caráter essencial de uma idéia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais”. (BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 58).
O estilo aparece nesse texto como atributo externo ou aparência. Percebe-se a concepção de forma e conteúdo ainda como momentos separados, sem uma relação mais complexa, o que encontra explicação no embate estético do período. Diante da produção que desprezava o conteúdo, Lima Barreto afirmava a necessidade de ter o que dizer".
[34]

A intenção de Lima Barreto era desagradar o literato tradicional e escandalizar o burguês. E isso por meio de uma acida ironia em que desnuda a sociedade:

“(...)’ revelar umas almas às outras, de estabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento dos homens’.No anseio de tornar acessível esse grande ideal de literatura, Lima Barreto projeta o riso em seus textos, não para o entendimento de uma elite culta e bem-informada, unicamente. Quer atingir o público anônimo para desmascarar-lhe os opressores fetiches do cotidiano”. [35]


É ao povo que esse profeta dirige seus oráculos, para mostrar-lhes a opressão de que eram vítimas ignorantes de seu próprio estado. Essa é a literatura militante de Lima Barreto.




Conclusão

Lima Barreto construiu sua personagem principal, Isaías, em círculos que se expandem a partir do próprio escritor. Não podemos conhecer o Isaías caminha jovem, aquele que vivência a ação, vemo-lo pelos olhos do Caminha maduro. Porém, o caráter autobiográfico do livro é demonstrado no Caminha jovem, posto que o Caminha maduro com sua desilusão e cinismo não pode representar Lima Barreto ainda militando. Assim Lima Barreto constrói uma voz narrativa fora dele que faz uma reflexão de uma personagem que de certo modo aponta para o escritor (descontadas as diferenças). E na construção dessa voz faz uma reflexão da condição do escritor e de suas relações com o modo de produção literário de sua época. Aponta também muitas questões sociais e dá a entender em todo o romance o caráter militante de sua literatura. Assim esse modo biográfico se expande e as aspirações do escritor com relação a sua literatura são demonstrados na personagem principal com sua idéia de missão. E nessa construção a obra acaba dialogando com outras obras. Portanto, nesse sentido, o caráter autobiográfico e pessoal não são mais a tônica do livro, pois as personagens da obra são estereótipos construídos. Se eles refletem a vivência do autor até certo ponto, pelo seu universalismo acabam por exceder essas imagens de época e adicionar perenidade à obra com suas imagens das relações sociais e das relações de poder e da própria caracterização dos tipos humanos. A Obra também é inovadora por utilizar uma linguagem que as vezes se aproxima do coloquial como forma de dar mais contraste, o que algumas vezes foi chamado de desleixo por seus críticos, lembremos que Lima Barreto falava e ainda fala ao homem médio.

“Perdoem-me os leitores a pobreza da minha narração”.
“Não sou propriamente um literato, não me inscrevi nos registros da livraria Garnier , do Rio, nunca vesti casaca e os grandes jornais da Capital ainda não me aclamaram como tal – o que de sobra, me parece, são motivos bastante sérios, para desculparem a minha falta de estilo e capacidade literária.
Caxambi, Espírito Santo, 12 de julho de 1905.
Isaías Caminha
Escrivão da Coletoria” [36]







REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIMA BARRETO, A.H. de. Prosa Seleta. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.
LIMA BARRETO, A.H. de. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo, Escala, 2004.
BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
FIGUEIREDO, Carmem L.N. de. Lima Barreto e o Fim do Sonho Republicano. 1. ed. Rio de Janeiro: 1995.
BÍBLIA DO OBREIRO. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.


NOTAS

[1] ASSIS BARBOSA, Francisco de. A Vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964.
[2]Vida de Lima Barreto, p. 5.
[3] Vida de Lima Barreto, p. 49.
[4]Vida Urbana, pág. 119, citado em Vida de Lima Barreto, p. 15.
[5] LIMA BARRETO, A.H. de. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, São Paulo, Escala, 2005, p. 25.
[6] Recordações, p. 69.
[7] Idem, p. 273.
[8] Idem, p.166.
[9] Publicado em A Notícia, Rio de janeiro, 15 dez. 1909.
[10] Citado em Vida de Lima Barreto, p. 171.
[11]Citado em Vida de Lima Barreto, p. 171.
[12]LIMA BARRETO, A.H. de. Recordações do Escrivão Isaías Caminha, São Paulo, Escala, 2005, p. 58.
[13]BÍBLIA DO OBREIRO. Barueri-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2003. Livro do Profeta Isaías, capítulo 1:2-3.
[14] Recordações, p. 53; capítulo IV.
[15] Isaías 1:21-26.
[16] Isaías 5:8, 11, 18, 20, 21, 22,23.
[17] Recordações, p. 92; capítulo VIII .
[18] Recordações, p.147; capítulo XII.
[19] Primeira Epístola aos Coríntios 5:11.
[20] Recordações, p. 163; capítulo XIII.
[21] Primeira Epístola aos Coríntios 7:2.
[22] Isaías 6:1-7.
[23] Recordações, p. 172; capítulo XVI.
[24] Recordações, p. 176; capítulo XVI.
[25] Revista Floreal número 1 de 25-10-2007, pág. 6; Impressões de Leitura, págs. 182-183, citada em Vida de Lima Barreto, pág. 153.
[26] Recordações, p. 142.
[27] Idem, p. 153.
[28] Recordações, p. 99.
[29] DE FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. Lima Barreto e o Fim do Sonho Republicano. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995. P. 28-29.
[30] Citado em Vida de Lima Barreto, pág. 156- Gazeta da Tarde, Rio de janeiro, 7-8-1911; “O Garnier Morreu”.
[31]Carta a Antonio Noronha dos Santos. RJ, 3-4-1909, citado em Vida de Lima Barreto, pág. 160.
[32] Citado em Vida de Lima Barreto, pág. 158, 159.
[33] Recordações, p. 64.
[34]http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/terceiramargemonline/numero12/xiv.html#_ednref1
[35] Lima Barreto e o Fim do Sonho Republicano, p. 12.
[36] LIMA BARRETO, A.H. de. Prosa Seleta. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2001. Prefácio Breve Notícia do escritor ao livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

Um comentário:

Anônimo disse...

olha, gostei muito de tudo que você postou sobre este livro..
me ajudou muito em um trabalho escolar.!!

Shalom!

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