Passei pela experiência da conversão em 1995. Desde então congreguei em duas igrejas evangélicas. A atual é congregacional, ou seja, adota um modelo de governo local por meio de uma comissão de membros e frequentes consultas aos congregados em assembléia. A primeira adotava um modelo mais centralizado, com pouco ou nenhuma decisão dos membros. De todo modo ambas são instituições sérias e procuram ser fiéis ao seu fundamento.
Mas essa questão da hierarquização não me impressionou desde o começo. na verdade não me causou estranhamento não ter quase nenhuma liberdade (havia, eu podia sair da igreja, mas se quisesse ficar, tinha que me submeter, e me submeti). Obviamente meus líderes invocavam razões bíblicas para isso. E havia muitas razões. Entretanto, conforme fui evoluindo no estudo das Escrituras, um retrato diferente emergiu e, com o tempo, concluí que as razões não eram apenas bíblicas, mas tinham raízes culturais. E com isso não quero dizer que a Bíblia não fale de liderança e autoridade, pelo contrário, ela fala muito. Mas sempre mediadas por outros fatores que abordarei mais para a frente. Importante é ter em mente que o brasileiro está acostumado a uma realidade social com uma hierarquia muito forte. Os japoneses são, por exemplo, bastante hierarquizados. Mas sua hierarquia é mediada por conceitos como fidelidade à família e honra. Um japonês me disse uma vez que na sua cultura importante é a família, não o indivíduo. Nossa cultura não é assim, ela depende de líderes fortes, vivemos ainda o coronelismo psicológico, é assim que entendemos que uma sociedade deve ser. No passado, a única autoridade eram os padres. Então eles assumiam não só o cuidado com as almas, como também cuidavam de uma série de outras questões da comunidade que serviam. Os pastores evangélicos assumiram essa manto, exceto que em vez de administrar suas regiões, o faziam com os membros de suas igrejas. Então toda leitura de autoridade bíblica era interpretada a partir dessa lente cultural. Muitos outros povos possuem esse tipo de estrutura cultural, mas estamos tratando do Brasil.
Vejamos um pouco como isso se deu na leitura bíblica. Comecemos por Paulo, ele muitas vezes emitiu ordens ( 2Ts 3:4, por exemplo). E é nas suas cartas que encontramos a maior parte dos princípios de liderança tanto na igreja quanto no seio familiar. Como aqui:
"Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos".
Efésios 5:22-24
Em geral se frisa a necessidade da mulher se submeter, mas um pouco adiante (v.25) Paulo diz que o marido deve amar a esposa como Cristo amou a igreja, assim como disse no versículo 21 que todos deviam se submeter uns aos outros. Muitos entendem que Paulo falava de costumes de seu tempo e que procurou dar-lhes um sentido bíblico usando essa metáfora. Outros entendem que aquele padrão deve ser aplicado até o fim dos tempos por causa do pecado de Eva (que não foi só dela). Como eu disse, a forma como a pessoa vai interpretar isso é de acordo com que o que já traz culturalmente. De todo modo, essa "autoridade" é mediada pelo amor e pelo princípio geral o homem também deve se submeter à mulher já que em Cristo não "há macho nem fêmea" (Gl 3:28), a unidade em Cristo extrapola todos os papéis sociais.
Outro tema muito abordado é o da submissão aos líderes e os papeis de liderança de modo geral. Cita-se muito esse texto da Carta aos Hebreus:
"Obedecei a vossos pastores, e sujeitai-vos a eles; porque velam por vossas almas, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria útil". Hebreus 13:17
Uma coisa que me chamou a atenção, tão logo aprendi um pouco de grego, é que o term,o traduzido por "pastores" (egoumenois) não é o mesmo usado em outros lugares (poimenes) com esse sentido. Ele significa "líder", qualquer líder dentro da comunidade cristã, o que inclui também os pastores. O que me causou estranhamento foi primeiro o fato de Paulo falar em submissão mútua em outro lugar, de ele tratar questões complexas (como a de um homem envolvido sexualmente com a madrasta, 1 Co 5:01) e de Pedro aconselhando o seguinte aos presbíteros ("pastor" é um termo genérico para quem lidera, modernamente se adotou o termo como um grau hierárquico):
"Aos presbíteros, que estão entre vós, admoesto eu (...)Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo cuidado dele, não por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto; Nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao rebanho. E, quando aparecer o Sumo Pastor, alcançareis a incorruptível coroa da glória". 1 Pedro 5:1,2-4
Existia um limite à autoridade, e regras para isso. Na verdade a cultura de Pedro era bastante hierarquizada. Mas se Cristo apenas estabelecesse isso, pouco estaria inovando. E como sabemos que Ele contrariou muitos dos "valores sociais" do seu povo, bem como estabeleceu novas diretrizes para evitar a hipocrisia e o abuso, é certo que faria isso também com a autoridade. E é o que ele fez. Em certa ocasião dois de seus discípulos vieram lhe pedir posições de autoridade, ele respondeu-lhes desse modo:
(...) "Sabeis que os que julgam ser príncipes dos gentios, deles se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre eles; Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal; E qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos".
Marcos 10:42-45
A autoridade se mostra em serviço. E o verdadeiro serviço não pode fluir senão de um ato de amor. Os fariseus buscavam autoridade, gostavam dos melhores assentos e de ser reconhecidos por isso publicamente (Mt 23:6-7), mas não deveria ser assim com seus seguidores. Desse modo Cristo estabeleceu a autoridade como serviço e esse princípio teme sido "uma pedra de tropeço" para muitos homens que viram no cristianismo uma força para seu desejo de domínio. Sempre foi uma questão de amor.